Vivemos numa
conjuntura social cheia de contrastes, entre riquezas e misérias, luxo e
exclusão, numa sociedade em que, apesar dos avanços políticos adquiridos pelo
esforço de inúmeras gerações de movimentos sociais, a desigualdade ainda é uma
das características mais determinantes da estrutura econômica. Grandes desequilíbrios
surgem daí, dentre estes o desemprego, as condições precárias de trabalho e a
exploração que alimenta a desigualdade e a concorrência desenfreada, estimulando
o individualismo inconsequente e irresponsável.
Em decorrência
disto, a relação entre o ser humano e a natureza é cada vez pior, e os impactos
ambientais provocados pelo estilo de vida dos seres humanos põem em risco o ecossistema
como um todo.
Catadores contribuem com a limpeza urbana |
A produção dos
resíduos sólidos de origem doméstica, comercial, industrial e hospitalar estão
entre os maiores vilões do desequilíbrio ambiental. No Brasil, 90% destes
resíduos não são reaproveitados, sendo em sua maior parte despejados em lixões
(que representa o que há de mais atrasado na disposição final de resíduos). Outra
parte bastante considerável acaba sendo despejada sem qualquer tratamento,
poluindo rios, oceanos e o solo.
Há também formas
especiais de produção e emissão de resíduos, como construções e festas de
grande porte. No Brasil existe uma gama muito grande de atividades festivas que
geram quantidades imensas de resíduos sólidos.
A festa recordista em produção de resíduos sólidos é o carnaval, que
chega a durar cinco dias e em Salvador envolve mais de dois milhões de pessoas.
Existem entretanto
inúmeras iniciativas no sentido de diminuir esse impacto e direcionar
corretamente os resíduos para reaproveitamento. Uma dessas ações é o projeto Ecofolia Solidária: O Trabalho Decente
Preserva o Meio Ambiente, uma iniciativa do Complexo de Reciclagem da Bahia
que em 2013 chegou a recolher mais de 70 toneladas de resíduos sólidos,
envolvendo mais de 2675 catadores de material reciclável. Contando com a
participação da Rede de Alimentação Solidária e da Rede de Costura da Bahia, o
projeto teve financiamento do Governo Estadual e apoio da prefeitura de
Salvador e de organizações não governamentais.
Para Joilson
Santana, um dos coordenadores do Ecofolia,
é importante que haja um processo de educação ambiental envolvendo toda a
população e que projetos como esse se tornem políticas públicas, garantindo a
redução dos impactos provocados e a emissão dos resíduos poluentes. O Ecofolia Solidária vincula políticas de
reconhecimento do trabalho dos catadores e de seu papel social com preservação
ambiental e economia solidária. O projeto manifesta na prática perspectivas e
ações de organizações que atuam com economia solidária como forma de superação
da exclusão e das desigualdades nas relações de trabalho, numa perspectiva de
equilíbrio ambiental.
O
desenvolvimento sustentável é um dos princípios da economia solidária, que
busca estabelecer novos valores nas relações humanas interpessoais e com o meio
ambiente. A perspectiva é de estabelecer bases para uma sociedade mais humana,
onde haja equilíbrio nas relações de trabalho, nas decisões coletivas, nas
formas de produção e na relação com a natureza. Onde a prioridade seja o bem
estar coletivo, superando o individualismo e a concorrência típicos da
sociedade de mercado que se estabelece a partir da desigualdade de classes, da
exploração do trabalho alheio e da prioridade do lucro.
As
organizações que têm como princípio a economia solidária extrapolam as necessidades
materiais de sobrevivência e geração de renda, buscando se estabelecer como
alternativas de desenvolvimento econômico aos padrões capitalistas a partir de
práticas sociais e ambientais sustentáveis, organizadas em redes de associações
e cooperativas que atuam por segmentos de produção. A reorganização do trabalho
se dá a partir de estruturas horizontalizadas, com base na autogestão tanto no
âmbito interno das organizações como na estruturação das redes.
A autogestão
pressupõe também autonomia dos grupos, liberdade e autodeterminação, democracia
direta e divisão igualitária dos recursos adquiridos; um mecanismo
aparentemente complexo, mas na realidade bastante simples quando entendido como
prática efetiva da igualdade, na qual as trabalhadoras e trabalhadores são
proprietários e gestores da própria atividade que desempenham.
Em Salvador o
pioneirismo do projeto Ecofolia Solidária:
O Trabalho Decente Preserva o Meio Ambiente abre espaço para um maior
reconhecimento e fortalecimento das práticas de economia solidária. O estado e
o município configuram-se como parceiros importantes que reconhecem
oficialmente a importância das redes de economia solidária e de seu papel na
superação dos desequilíbrios sociais.
A Rede de
Alimentação Solidária, uma das mais estruturadas em Salvador, já consegue
desenvolver atividades de grande porte, atuando em escala industrial. Em junho
de 2012, a Rede participou da Cúpula dos Povos durante a Rio +. 20, chegando a
produzir dezoito mil refeições por dia.
Estabelecer o
novo a partir de resgate de tradições também é um desafio da economia solidária,
que encontra referências nas práticas societárias dos povos africanos e
indígenas. Para Ana Cristina Caminha, da Cooperativa Guia de Luz, “a prática
de economia solidária sempre esteve presente no candomblé, embora o termo só
tenha se tornado conhecido recentemente”. A Cooperativa Guia de Luz surgiu no
Terreiro de candomblé Ilê Axé Obá Adenilá e iniciou suas atividades com a
produção e venda de acarajé. Atualmente desenvolve atividades periódicas a
exemplo da venda do feijão tradicional em festas como a Lavagem do Bonfim e a
Mudança do Garcia. Ana Caminha afirma que “o projeto Ecofolia Solidária é
importante também para a articulação das redes, para estabelecer novos laços,
novos conhecimentos, ocupar novos espaços, fortalecer e divulgar práticas
solidárias nas comunidades. Entretanto, ainda falta reconhecimento para que
haja mais políticas públicas voltadas para esse tipo de organização produtiva”.
José da Boa
Morte, da Secretaria de Economia Solidária da Superintendência Regional do
Trabalho, acredita que “o maior entrave para as organizações que atuam com
economia solidária é a concepção de sociedade assimilada pelos governos, que é de
uma sociedade de classes que atua em favor da desigualdade e traz o modelo de
organização do Estado, que para gerar desenvolvimento é preciso gerar trabalho
assalariado no qual as pessoas vendem sua força de trabalho. Isto entra em
choque com a concepção de economia solidária, que não se encontra no modelo de
plasticidade importada pelo mercado. Na economia solidária o que é importante é
gerar inclusão, substituindo a lógica da venda da força de trabalho por uma
construção coletiva onde as pessoas produzem dentro de suas possibilidades e
necessidades, sem gerar excesso para além de suas necessidades reais”.
Para Débora
Rodrigues, da Organização Vida Brasil, um passo importante foi a formação do Fórum
de Economia Solidária, que a Vida Brasil acompanha desde 2005. A Vida Brasil
atua no sentido contribuir com a superação das dificuldades estruturais,
organizacionais e interpessoais das redes. Débora atua como Coordenadora do
Programa de Geração de Renda e Economia Solidária: Mulheres em Rede, que é uma
estratégia emancipatória de erradicação da pobreza voltada para mulheres e
jovens e que fomenta a organização de grupos produtivos.
Segundo Débora,
as cooperativas estão buscando ampliar a sua atuação, fornecendo alimentação
para empresas de maneira a garantir uma geração de renda permanente, atendendo eventos
institucionais como coffee breaks e buffets.
Uma das
bandeiras do movimento de economia solidária é a formação de redes por segmentos,
Débora revela o sonho de que “um dia o projeto Ecofolia Solidária possa ser
totalmente realizado com bens produzidos por redes da economia solidária, como
a Rede de Agricultura Familiar e a Rede Sabor Natural do Sertão, que envolve
organizações do semi-árido da Bahia, Pernambuco e Piauí”.
De acordo com
ela, os desafios da economia solidária são ainda a comercialização dos
produtos, os espaços para essa comercialização, a articulação de parceiros e a
quantidade pra suprir grandes demandas. Para a superação desses problemas é
importante perceber todo o circulo produtivo, tratar de questões educacionais e
dos hábitos de consumo da população que sofre pressão da mídia. É preciso ainda
superar a questão dos atravessadores, além da necessidade de ter um marco
regulatório legislativo que atenda especificamente a organizações da economia
solidária.
As redes de
economia solidária são formadas por gente simples do povo, mas que superaram a
condição de objeto do sistema e do capital e passaram a serem sujeitos de sua
própria existência, do seu trabalho e da sua forma de vida, experimentando a
igualdade como princípio, a dignidade como exemplo e a liberdade como meio e
fim.
“A economia
solidária é uma realidade”, afirma Débora Rodrigues, “na qual milhares de
trabalhadoras e trabalhadores têm provado ser possível produzir e se organizar
de forma autogestionária, e a cada dia surgem novas organizações que praticando
cotidianamente provam que ‘uma outra economia acontece’”.
Texto: Marcos Grito
Fotos: Paulo Magalhães
Texto: Marcos Grito
Fotos: Paulo Magalhães